O recente debate jurídico envolvendo depoimentos em Comissões Parlamentares de Inquérito deixou em evidência a questão fundamental do nosso ordenamento jurídico que merece reflexão mais ampla: o direito ao silêncio. Mais do que uma prerrogativa de investigados em processos criminais, trata-se de uma garantia constitucional que pode e deve ser exercida por qualquer cidadão em situações que representem risco de autoincriminação.
O artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal estabelece que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”. Embora o texto mencione especificamente “o preso”, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que essa garantia se estende a qualquer pessoa que possa ser prejudicada por suas próprias declarações.
O princípio da não autoincriminação, derivado da expressão latina nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a se descobrir), representa uma das vigas mestras do Estado Democrático de Direito, com origem no direito anglo-americano e incorporado ao nosso sistema jurídico como proteção fundamental contra excessos do poder estatal.
É importante compreender que o direito ao silêncio não se limita a investigados ou acusados em processos criminais. Qualquer pessoa, mesmo na condição de testemunha, pode exercer essa garantia quando suas respostas puderem resultar em prejuízo jurídico. Isso inclui depoimentos em CPIs, inquéritos policiais, procedimentos administrativos, audiências judiciais e qualquer situação em que haja risco de autoincriminação. A distinção formal entre “testemunha” e “investigado” não pode servir de pretexto para a supressão de garantias fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal tem sido categórico ao ampliar a proteção do direito ao silêncio. No julgamento do HC 79.244/DF, o Min. Sepúlveda Pertence (2000) já assegurava sua proteção: “A jurisprudência deste Supremo Tribunal sedimentou-se no sentido de ser oponível às Comissões Parlamentares de Inquérito a garantia constitucional contra a autoincriminação, que tem sua manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.”
A interpretação é reiterada em outros julgamentos, como no HC 171.438/DF – Min. Gilmar Mendes (2019): “O direito à não autoincriminação abrange a faculdade de comparecer ao ato, ou seja, inexiste obrigatoriedade ou sanção pelo não comparecimento. Ordem concedida para convolar a compulsoriedade de comparecimento em facultatividade.” ou no julgamento do HC 230.446/SP, quando o Ministro Luiz Fux assegurou que “a aplicação do princípio da não autoincriminação não implica o direito ao silêncio absoluto, mas garante à testemunha o direito de não responder a perguntas que possam incriminá-la”.
Um aspecto crucial dessa garantia é que o exercício do direito ao silêncio jamais pode resultar em prejuízo para quem o invoca. Não pode haver prisão ou medida restritiva de liberdade, não pode ser interpretado como confissão ou indício de culpa, não pode gerar presunção desfavorável e deve ser respeitado sem questionamentos ou pressões. O silêncio é um direito, jamais uma obrigação de falar.
Quando há ameaça concreta de violação do direito ao silêncio, o Habeas Corpus preventivo surge como instrumento processual adequado para garantir a proteção antecipada. A competência para julgar tais pedidos varia conforme a autoridade coatora – no caso de CPIs estaduais presididas por deputados estaduais, por exemplo, a competência é do Tribunal de Justiça do Estado, uma vez que deputados estaduais não possuem foro por prerrogativa de função perante tribunais superiores.
Para qualquer cidadão que se encontre em situação de risco de autoincriminação, algumas orientações são fundamentais: buscar assistência jurídica, pois o direito à assistência técnica é garantido constitucionalmente; não hesitar em exercer o direito ao silêncio; documentar eventuais ameaças ou coações; e, principalmente, conhecer seus direitos, pois a informação é a melhor defesa contra abusos.
O direito ao silêncio representa muito mais que uma garantia processual: é um pilar fundamental da dignidade humana e da proteção individual contra o arbítrio estatal. Em tempos de crescente judicialização da política e multiplicação de investigações, conhecer e exercer essa garantia torna-se ainda mais relevante. Todo cidadão tem o direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo, e essa garantia não conhece distinções de classe social, função pública ou relevância do caso.
A democracia se fortalece quando os direitos fundamentais são conhecidos, respeitados e efetivamente exercidos. O direito ao silêncio é, sem dúvida, uma dessas garantias essenciais que merecem nossa atenção e proteção constante. Afinal, em um Estado Democrático de Direito, o poder de investigar do Estado deve sempre conviver harmoniosamente com as garantias individuais dos cidadãos, e o direito ao silêncio é uma dessas garantias que jamais pode ser relativizada ou suprimida.
Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta a profissional habilitado para casos específicos.